Como (não) falar de impostos

Sociólogo

“Carga fiscal”, “punção fiscal”, “peso dos impostos”. Nos últimos anos, estas expressões tomaram conta do discurso politico sobre a fiscalidade em Portugal, não sendo apenas usadas pelos partidos da direita, mas também por um governo que se tornou uma referência na social-democracia europeia. A redução da carga fiscal tornou-se mesmo um dos critérios do (in)sucesso da governação, de tal forma que, no fim de Março, perante a confirmação do mais baixo défice orçamental do nosso período democrático (em 2018), a imprensa deu mais visibilidade a outro resultado “histórico”: a mais alta carga fiscal de sempre.

Como já muitos explicaram, a carga fiscal – ou, numa formulação mais neutra, o “nível de fiscalidade” – subiu em 2018 por bons motivos: como não houve subida das taxas de imposto, foi o crescimento da atividade económica e do emprego que gerou maior receita fiscal. É preciso dizê-lo: a sua subida é uma boa notícia.

Este texto, porém, não é sobre a relação entre a fiscalidade e o PIB – mas sobre a forma como a social-democracia em Portugal se habitou a falar dos impostos. Não é preciso um estudo profundo sobre o impacto do discurso político na opinião pública para compreender que efeito tem o sistemático uso, pelos políticos, e a exposição, pelo público, a uma linguagem técnica que incorpora julgamentos normativos negativos sobre a tributação. A situação é ainda mais preocupante quando os social-democratas partilham a linguagem e o critério de sucesso da direita liberal: a redução da carga fiscal.

Esta atitude, para além de deixar os eleitores órfãos de uma contranarrativa que lhes dê instrumentos para pensar sobre os impostos de outra forma, coloca os sociais-democratas sistematicamente à defesa e limita a sua margem de manobra programática na política fiscal. Se os impostos são uma “carga” ou um “peso”, é difícil imaginar outro objetivo que não seja baixá-los tão rapidamente quanto seja sustentável do ponto de vista orçamental. Neste quadro, como será possível pensar no futuro em subir um imposto (por exemplo, através do englobamento, mesmo que parcial, do IRS) ou (re)introduzir um outro (como o imposto sucessório)?

É verdade que, por vezes, os impostos são publicamente justificados como fonte de financiamento de políticas públicas que os cidadãos valorizam (saúde, educação, proteção social, segurança pública, justiça) e das necessidades financeiras do Estado, ou como instrumento de luta contra as desigualdades. Estas justificações, porém, para além de poderem sugerir mais perguntas do que respostas (é mesmo preciso pagar tanto por esses serviços, muitas vezes de qualidade abaixo do esperado? quais as desigualdades que devem ser combatidas: todas ou só as que são consideradas injustas?) são quase sempre demasiado tímidas. Para lutar contra um senso comum que encara, na melhor das hipóteses, a tributação como um “mal necessário”, é preciso um argumentário mais robusto.

Ora, defender a importância da tributação implica assumir que somos parte de uma comunidade; que viver em comunidade implica a existência de direitos e de obrigações (porque é o cumprimento das segundas que assegura a possibilidade de garantir os primeiros); que numa comunidade nacional dotada de um Estado responsável pelas funções de coordenação essenciais, os impostos são o meio mais eficaz para cumprir as nossas obrigações como cidadãos; que a tributação obedece (ou deve obedecer) a princípios de justiça amplamente partilhados (sendo “justiça fiscal” um valor mais importante e mobilizador do que o da “estabilidade fiscal”); e que as políticas que os impostos financiam não apenas redistribuem, mas aumentam a liberdade agregada, numa definição de “liberdade” que é ela própria diferente da usada pela direita liberal.

Talvez esta invocação de um comunitarismo cívico fira alguma sensibilidade quase libertária de muitos sociais-democratas. Mas falar de direitos sem falar das obrigações que os financiam é filosoficamente pobre e politicamente ineficaz, deixando o discurso dos “deveres” dos cidadãos para ser apropriado pela direita.

Curiosamente, há quase um quarto de século, o New Labour procurou reintroduzir no discurso social-democrata uma dimensão (neo)comunitarista: “No rights without responsabilities”, repetia Tony Blair. Infelizmente, esta inovação discursiva visava reforçar a centralidade da “responsabilidade individual” e passar a mensagem de que o “novo” Estado social não toleraria que os mais pobres continuassem a receber prestações sociais sem contrapartidas efetivas na procura ativa de emprego. Não é, porém, necessário subscrever o significado punitivo desta retórica para reconhecer que a ideia de que “não há direitos sem responsabilidades”, e o princípio de reciprocidade que lhe subjaz, é fundamental para defender a ideia de comunidade e, por extensão, para justificar a existência de impostos.

Alguns dirão que este é um combate discursivo impossível de ganhar, porque “ninguém gosta de pagar impostos” e “não é possível convencer as pessoas do contrário”. Acontece que a falta de comparência é a pior de todas as opções. Combater a hegemonia liberal no discurso público sobre os impostos exige, por parte dos social-democratas, decidir abandonar a linguagem corrente, substituí-la por uma argumentação nova, e ter a coragem de a usar de forma sistemática e pedagógica, procurando liderar uma narrativa que dê ao público a oportunidade de pensar sobre impostos de forma diferente da que é permitida pelo discurso da direita liberal.

Como citar: Mendes, Hugo (2019), “Como (não) falar de impostos”,Socialismo Democrático. https://socialismodemocratico.ps.pt/index.php/2019/04/22/como-nao-falar-de-impostos/

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