Nunca, como hoje, o debate político europeu foi tão dominado pelas migrações internacionais, que, em muitos países, são um crescente foco de luta político-partidária. Este é um debate muito emotivo, pouco esclarecido e esclarecedor, que tem alavancado a ascensão dos partidos populistas de extrema-direita nacionalista. Muito deste sucesso eleitoral encontra explicação na narrativa anti-imigração, anti-Europa e anti-“o outro”, bem como na forma como estes partidos alimentam e cavalgam o medo das pessoas em relação às migrações, apresentando-as sistematicamente como uma “ameaça” que é preciso eliminar.
Esta ainda não é uma realidade no nosso país. Friso ainda, porque também aqui se vislumbram sinais de uma certa narrativa anti-imigração, que não é exclusiva de partidos marginais ou movimentos inorgânicos. Está, por exemplo, latente no CDS-PP, e em certo PSD, como o demonstra a sua reação, em 2017, a uma alteração à nossa lei da imigração, que se limitou a reintroduzir limites à expulsão de imigrantes que vigoraram até 2012, concretizando, nesta sede, o direito ao respeito pela vida familiar e privada, um direito fundamental de qualquer pessoa. Foi uma reação virulenta, muito ampliada por certa comunicação social, mais interessada em sensacionalismo do que no cumprimento da sua missão de informar com verdade, e que deixou no ar a perceção que a atual maioria estaria a ameaçar a segurança nacional. Não passou, no entanto, de uma tentativa de trazer o tema para a arena político-partidária. Mas não tenhamos ilusões! Este é um tema que vai regressar. Basta lermos a moção de Nuno Melo “mais Europa, menos Bruxelas”, para vislumbrarmos ali, de forma ainda tímida, a mesma narrativa de Viktor Orbán ou de Matteo Salvini, que sistematicamente relacionam imigração com segurança e terrorismo, como forma de propagar e consolidar a perceção do imigrante como ameaça ao nosso modo de vida, à nossa identidade nacional, à nossa segurança. Uma ameaça que eles irão, naturalmente, eliminar através das suas políticas anti-imigração e de constante reforço do controlo de fronteiras.
Infelizmente, não é só a extrema-direita populista que alimenta de forma consistente o nexo entre segurança e imigração e a consequente perceção deste fenómeno humano como uma ameaça. Hoje, a política europeia de imigração, decidida no Conselho Europeu pelos chamados líderes do mainstream, também é caracterizada por um processo de hipersecuritização, que ignora a realidade do fenómeno e secundariza os valores humanistas da Europa.
As migrações internacionais são um fenómeno tão antigo como a humanidade. Sempre existiram e existirão, com maior ou menor intensidade. É tão ilusório pensar que é possível pará-las, como pensar que se consegue parar o vento com as mãos. A própria Europa sempre foi e é um continente de emigração. Os europeus sempre emigraram para os quatro cantos do mundo à procura de melhores condições de vida e oportunidades. Mas a Europa não é apenas o segundo maior continente de emigração do mundo. Na era da globalização, também se transformou em polo de atração de fluxos migratórios mais significativos e diversificados, sendo concomitantemente o segundo maior continente de imigração. No entanto, a imigração não é nem um exclusivo da Europa (embora reine um certo eurocentrismo que a representa como um problema europeu), nem tem a dimensão que alguns querem fazer parecer que tem. Mesmo com o aumento, em termos absolutos, dos fluxos migratórios em todos os continentes, apenas 3,5% da população mundial é imigrante, ou seja, está fora do seu país de origem. E a realidade na Europa não é muito diferente! Apenas cerca de 5% da população residente na União Europeia tem a nacionalidade de um país terceiro, é imigrante. Em perspetiva, a dimensão da imigração é relativamente reduzida, pois, tal como no passado, a esmagadora maioria das pessoas não emigra.
Por outro lado, nos anos 90 também a Europa sofreu uma “crise migratória” de dimensão similar à de 2015, sem que a questão das migrações se tivesse excessivamente politizado ou se tivesse verificado uma tão impressiva ascensão dos partidos de extrema-direita, de natureza populista, alavancada por uma exploração indecorosa da narrativa anti-imigração.
O que é que mudou, para que, hoje, exista uma perceção de invasão de imigrantes e de ameaça?
Na era do imediatismo mediático, a chamada “crise dos refugiados” de 2015 entrou maciçamente pelas nossas casas adentro, com imagens diárias de pessoas desesperadas a tentar entrar na Europa. Os fluxos migratórios irregulares e as tragédias humanitárias a eles associadas (um fenómeno endémico de décadas) intensificaram-se e, sobretudo, tornaram-se mais visíveis. Isto fez aumentar a ansiedade das pessoas e a sensação de descontrolo, que parece ser mais forte do que a realidade. A perceção de que a imigração é uma ameaça à integridade territorial e à segurança do Estado e, de forma mais difusa, à identidade nacional foi-se, assim, sedimentando, com um forte contributo da narrativa anti-imigração daqueles que descobriram que o medo das pessoas, fundado ou não, dá votos e, consequentemente, poder. Por exemplo, a Alternativa para a Alemanha (AFD) teve uma rápida ascensão a partir do momento em que passou a basear o seu discurso político e programa eleitoral em torno de um único tema: a necessidade de proteger a Alemanha e os alemães da ameaça “terrível” da imigração e dos refugiados para garantir a segurança e identidade dos alemães, que teria sido posta em causa pela política da Chanceler Ângela Merkel de acolhimento de refugiados. Para o efeito, abusa, com sucesso, de um discurso simplista que explora o medo das pessoas, ao mesmo tempo que o apazigua com promessas de contenção da imigração e de expulsão de imigrantes como as únicas medidas de salvação. E esta é a “receita” dos ganhos eleitorais de partidos de extrema-direita nacionalista da Hungria à Suécia, passando pela França ou pela Áustria. Infelizmente, nenhum país está imune a esta tendência.
Neste contexto, não podemos ignorar os efeitos perversos de políticas de contenção e de hipersecuritização da imigração adotadas por muitos países europeus e pela própria União Europeia (UE). Foram elas que, em grande medida, contribuíram para a irregularidade migratória e para aumentar a dependência dos imigrantes em relação às redes criminosas de auxílio à imigração ilegal, incrementando o seu lucro e tornando-as mais sofisticadas e perigosas, não apenas para os Estados mas para os próprios imigrantes. Também foram estas políticas que empurraram a Europa para um círculo vicioso de políticas de imigração crescentemente restritivas e baseadas no constante reforço do controlo de fronteiras, que originam mais imigração irregular (e o drama humano a ela associado), o que por sua vez conduz a medidas ainda mais restritivas, e assim sucessivamente. Não é por acaso que, apesar de todas as medidas da UE de securitização das fronteiras europeias e de repressão da imigração irregular e dos muitos milhões de euros investidos neste domínio, o Mediterrâneo é, no contexto migratório, a fronteira mais letal do Mundo. As redes criminosas que aí operam adaptam-se e procuram rotas cada vez mais distantes e perigosas. A obsessão da Europa pela contenção de fluxos de refugiados e imigrantes e pelo controlo de fronteiras, como forma de apaziguar os “medos” do eleitorado, tem, infelizmente, secundarizado a segurança humana, a segurança do próprio imigrante.
Por outro lado, esta política de controlo e contenção é, em grande medida, tributária do medo do chamado mainstream de perder votos para a extrema-direita anti-imigração. Mas também alimenta a ideia da imigração como problema, como algo intrinsecamente “mau” e que deve, portanto, ser eliminado. No fundo, a mesma ideia que tem um papel central na narrativa anti-imigração e que é perigosa, pois o seu potencial epidémico pode escapar à nossa vontade ou ao nosso controlo.
Por isso, hoje, mais do que nunca, precisamos de uma contranarrativa e de políticas migratórias factualmente sustentadas no facto de a Europa não estar a ser invadida por fluxos migratórios de dimensão inimaginável e ter, pelo contrário, necessidade de mais imigração para debelar aquela que é a sua grande crise: o seu acentuado e acelerado envelhecimento demográfico.
A questão que podemos, legitimamente, colocar é, portanto, a de saber como podemos mudar o status quo e ter uma política europeia de imigração e asilo mais fiel aos valores humanistas, que são o legado ético da Europa e que a deveriam distinguir, bem como mais consentânea com o seu próprio interesse e o dos europeus? A resposta é complexa e não caberá, seguramente, nestas linhas. No entanto, avanço cinco elementos que me parecem fundamentais.
Em primeiro lugar, a Europa tem de reconhecer que, no atual contexto mundial de crescente conflitualidade e disparidade económica, a imigração é inevitável, para além de ser necessária para debelar os desafios do seu declínio demográfico. É evidente que a imigração não consegue eliminar todo o impacto negativo deste declínio na economia europeia e no seu modelo social. Mas é um meio de o atenuar. Por isso, são necessários canais de imigração legal, simples e transparentes, que permitam assegurar a regularidade migratória e a gestão de fluxos migratórios. Esta é também a forma mais eficaz e inteligente de combater a imigração irregular e as tragédias humanitárias a ela associadas, destruindo o modelo de negócio das redes criminosas de auxílio à imigração irregular, que políticas de imigração muito restritivas ajudaram a criar e potenciar.
Em segundo lugar, é essencial preservar o asilo e a proteção das pessoas que dele necessitem. O direito de asilo é inegociável e deve ser intransigentemente defendido, sob pena de se negarem os valores civilizacionais e humanistas que definem e devem continuar a definir a Europa.
Em terceiro lugar, é urgente ter políticas de integração mais efetivas e dotadas de meios financeiros adequados. A crescente diversidade dos fluxos migratórios aumenta o seu potencial transformador das sociedades de acolhimento. Como qualquer processo de transformação, pode gerar tensões que devem ser minoradas através de um forte investimento na integração dos imigrantes e na preparação das comunidades para uma maior diversidade racial, cultural e religiosa.
Em quarto lugar, é crucial a cooperação internacional. Sendo as migrações internacionais um fenómeno transnacional por natureza, só podem ser geridas de forma regular e ordeira através da cooperação internacional em todas as suas dimensões, incluindo a da imigração legal, e não apenas naquela que é a privilegiada pela UE, a da contenção e controlo.
Por fim, e em quinto lugar, é imperioso atuar de forma mais eficaz sobre as causas remotas dos movimentos migratórios, que são as mesmas ao longo da história da humanidade: a insegurança, a guerra, a miséria, as alterações climáticas, o desrespeito pela dignidade da pessoa humana, a falta de Estado de direito, a deficiente governação, etc. Ou seja, tudo o que força as pessoas a abandonar o seu país de origem. Mas agir sobre causas remotas exige alterações profundas das políticas da UE, que ultrapassam, em muito, a sua política de ajuda ao desenvolvimento. É uma ilusão pensar que a ajuda ao desenvolvimento dos países de origem tem a virtualidade de conter a imigração. Antes de mais, porque não existe tal evidência, muito pelo contrário. O desenvolvimento económico dos países de origem facilita fluxos migratórios, pois para migrar são sempre precisos recursos financeiros e a miséria extrema imobiliza as pessoas. Por outro lado, a ajuda ao desenvolvimento, hoje muito condicionada negativamente pela UE à capacidade dos países beneficiários de conter fluxos, não terá esse efeito, enquanto a economia e a paz social desses países for fortemente dependente das remessas dos seus emigrantes. No âmbito do próximo quadro financeiro plurianual, a UE prevê gastar, num período de sete anos, cerca de 38 mil milhões de euros em ajuda ao desenvolvimento para África. Em 2017, estima-se que as remessas dos imigrantes para a África subsariana atingiram o montante de cerca de 39 mil milhões de dólares e, em 2018, cerca de 41 mil milhões de dólares. Existem estados africanos cujo PIB depende, em grande medida, destas remessas. Para eles, a emigração é fator de desenvolvimento e de paz social, pelo que é ilusório pensar que vão conter fluxos migratórios a troco de “meia dúzia de tostões”. Por isso, atuar sobre causas remotas das migrações convoca a alteração de outras políticas europeias, como as de combate às alterações climáticas ou a política externa e de segurança, para contribuir efetivamente para prevenir e resolver conflitos ou garantir o respeito pelo Estado de direito e pelos direitos humanos. Mas também das políticas comercial e agrícola, para dar aos países de origem reais oportunidades de desenvolvimento económico sustentável e, consequentemente, melhores condições de fixação das populações. Tudo isto é necessário para que a emigração deixe de ser um meio de fugir à insegurança, guerra, violação de direitos humanos ou miséria e passe a ser aquilo que ela deveria sempre ser: uma opção!

N.º 1 (nova série), abril de 2019
Diretor: José Leitão
Conselho editorial: Alberto Arons de Carvalho, António Reis, Constança Urbano de Sousa, Margarida Marques, Mariana Vieira da Silva, Paulo Pedroso, Rui Pena Pires, Susana Ramos e Tiago Fernandes
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Portugal Socialista 2019, #2
- Editorial
- O voto responsável: dar força a Portugal
- As eleições europeias contam
- Transição energética e revolução digital: por uma globalização progressista
- Regiões ultraperiféricas como os Açores são um ativo valioso para a União Europeia
- Os Desafios do Brexit para Portugal: a Portugal IN
- Legislar melhor
- O tempo da urgência - Recuperar a Biodiversidade, assegurar o futuro comum
- Por uma política comum de imigração e asilo em defesa dos valores da União Europeia