Que predisposição política deve o Partido Socialista assumir na Europa? Que contributo pode o socialismo democrático português dar à ideia de Europa? Que valores, que ideias, que rumo comum, que visão de futuro propomos nós para a União Europeia? Deixemos de lado, por instantes, a discussão sobre quantos euros em preços correntes ou constantes conseguiu o Governo negociar em fundos europeus para o país, e invertamos a questão, lembrando-nos da lição de responsabilidade cívica de John Kennedy: o que podemos nós fazer pela Europa? O que podemos nós acrescentar ao maior projeto político do século XX, para que ele se torne o maior projeto político do século XXI?
Comecemos por reconhecer que a ideia de Europa está em crise. Mais do que o projeto europeu no concreto das suas políticas e instituições, o que está em crise profunda é a própria ideia de Europa, do que somos e do que queremos ser enquanto europeus. Falta-nos uma visão de futuro comum, uma vontade política própria que oriente a ação da União e que seja mais do que o mínimo denominador comum entre os interesses de cada Estado-membro. Que razões explicam esta crise existencial? Talvez ela faça parte da própria natureza da União Europeia, da fragilidade inerente ao híbrido político que é e às suas inevitáveis contradições: tem e não tem soberania, é e não é democrática, quer e não quer ser uma união política. Ou talvez a crise existencial seja, hoje, mais óbvia porque nos perdemos na imensidão das discussões do dia. Brexit, Quadro Financeiro Plurianual, Semestre Europeu, Zona Euro. Mas, como diz George Steiner, a ordem do dia dificilmente estimula a alma humana.
Como gerir, então, a crise existencial e reavivar a alma europeia?
Seguindo um pequeno ensaio de Paul Ricoeur sobre a consciência histórica na Europa, proponho três razões pelas quais o socialismo democrático tem a predisposição política certa para responder ao desafio europeu do século XXI.
A primeira razão tem a ver com a existência de um espaço próprio de ação política, isto é, com a garantia de que a decisão política não se submete nem se reduz a imediatismos nem a determinismos. Talvez o melhor contributo deste Governo do PS para a sociedade portuguesa tenha sido o de libertar o país das narrativas unívocas, fechadas, deterministas – não só do ponto de vista da ação governativa, mas do próprio sistema político, a novidade da atual legislatura veio demonstrar que a democracia portuguesa está bem viva. Mas essa libertação só é possível mediante, por um lado, uma abertura crítica aos eventos passados e, por outro, o reconhecimento de que existe um alargado leque de possibilidades para o futuro que permite agir no presente e alterar o curso dos acontecimentos. É esta libertação do espaço de decisão política que o PS deve trazer para a Europa, sobretudo quando ganham tração tendências populistas que conduzem a uma redução trágica da liberdade política. Com uma visão petrificada do mundo, os nacionalismos eurocéticos ou antieuropeus prometem retomar a grandeza e a pureza do passado nacional, restituindo a voz ao povo desprezado pela arrogância das elites cosmopolitas que governam a partir de Bruxelas. Os populismos entrincheiram os cidadãos em narrativas fechadas e catastrofistas, a sua força motriz reside na exploração do medo e das inseguranças. Mas, ao contrário do que anunciam, a liberdade política está condenada quando o que a move é o medo e a angústia. Ao contrário do que proclamam, as adversidades enfrentam-se em conjunto, com esperança e coragem, fora da trincheira. Foi exatamente isto que António Costa defendeu no Parlamento Europeu no ano passado.
O segundo argumento está relacionado com a especificidade da história europeia. Ricoeur sugere que a história do continente europeu foi sendo construída através de dialéticas entre tradições e convicções muito fortes e a crítica a essas tradições, num permanente estado de crise. Essas crises acontecem devido às migrações, seja em sentido social, pela presença e convivência entre povos diferentes, seja no campo das ideias, com a influência de outras formas de pensar e olhar o mundo. Ora, a superação das crises foi sendo feita com a integração da diversidade que as permanentes migrações trouxeram ao seio da Europa. Isto significa que a civilização europeia não é estanque, nem homogénea, nem pura, nem essencialista, é, isso sim, uma combinação de múltiplas influências, da raiz greco-romana ao iluminismo, dos árabes aos mongóis, e que essa confluência, feita à luz de uma consciência crítica, enriquece a cultura e a identidade dos povos europeus, não o inverso como alguns defendem. Mais uma vez, esta tem sido a linha defendida por António Costa sobre a vocação de abertura de Portugal e da Europa (apesar de alguns líderes europeus se virem afastando dessa vocação europeia). A nossa postura é de abertura ao mundo e ao outro, é de construção de pontes e acomodação das diversidades. Por isso o nosso regime de imigração é um dos mais abertos do mundo. Por isso somos uma das principais vozes contra as tendências protecionistas na União, não só face ao exterior como no interior do próprio mercado único. Não é acidental termos Guterres na ONU e Vitorino na OIM. Uma Europa que se vem fechando sobre si mesma precisa, mais do que nunca, da voz determinada daqueles que acolhem e integram a diversidade e que fazem da convivência com o mundo a sua vocação.
A terceira razão que confere ao PS a predisposição certa para defender a ideia de Europa é um elemento fundamental em política: a dimensão da utopia. Se os argumentos anteriores pressupunham a abertura do espaço de decisão e a abertura ao outro, a utopia pressupõe a abertura ao futuro. Sermos capazes de lidar com a imprevisibilidade de um mundo que é, contrariamente do que supunha a tese do fim da história, cada vez mais diferente de nós, talvez até mais hostil, mais incerto, que nos escapa cada vez mais. Só assumindo a coragem política da abertura, apesar das fragilidades e das fraturas que essa abertura pode implicar, podemos verdadeiramente projetar um futuro melhor.
É preciso que haja utopia, sonho, desígnios que superem a circunstância. Sem esse elemento perde-se o rumo e paralisamos. O que nos leva a questionar se a postura conservadora pode alguma vez ser uma boa resposta política, já que rejeita a utopia como tal. A mudança no conservadorismo dá-se por necessidade pragmática. Mas sem um sentido discernível, identificável, não há ação política possível, não há política propriamente dita. Há metas, há objetivos, mas não há finalidades, causas pelas quais lutar. Na política conservadora, as decisões orientam-se por força da necessidade ou da utilidade. A Comunidade Económica Europeia nasceu da necessidade e da utilidade, mas superou largamente essas causas. Só o facto de ter deixado cair o elemento “Económica” e passado a designar-se União já o indicia. Somos sim, desde o início, um projeto político e civilizacional, temos sim um sentido no nosso agir político. A necessidade e a utilidade, por si só, não estimulam a alma humana, limitam a inteligibilidade dos acontecimentos e constrangem a liberdade política.
A social-democracia tem a predisposição exatamente oposta à da direita conservadora. Para a social-democracia a mudança é o motor e a orientação da ação política, o que não significa querermos, como a esquerda radical, revolucionar toda a sociedade, desconstruindo as suas estruturas básicas, porque aí estaria a liberdade em jogo (é necessária uma apreciação crítica daquilo que pode ser revolucionado e do que não pode, ou cujos riscos para a liberdade e o bem comum são significativos). Sobretudo no século XXI, em que a mudança rápida é a regra, não podemos não acompanhar essa mudança aguardando os resultados de uma suposta “ordem espontânea” da sociedade que, só por serem espontâneos, já seriam bons. Temos de assumir o dever de orientar e adaptar a sociedade à mudança, sem a estrangular nem a deixar à deriva – como recomenda a doutrina libertária –, estando conscientes de que a mudança é inevitável e que, por isso, dela devemos saber colher os melhores frutos. Que ninguém fique à deriva, que ninguém fique para trás. Os desafios que a revolução tecnológica e a globalização nos colocam são o melhor exemplo: há que transformá-las em algo bom para todos, saber distribuir equitativamente os seus benefícios e limitar as suas externalidades negativas.
Em Portugal só o PS está pronto para este desafio na Europa, porque só o PS tem a disposição política adequada para o fazer.
Como citar: Filipa Brigola Filipa Brigola (2019), “Três argumentos para dar força ao PS na Europa”, Socialismo Democrático. https://socialismodemocratico.ps.pt/index.php/2019/04/28/tres-argumentos-para-dar-forca-ao-ps-na-europa/