A afirmação social da Europa

A afirmação social da Europa

1. Nestas eleições europeias temos que escolher o significado que queremos dar à palavra “reforma”. Para o Partido Popular Europeu, bem como para os partidos portugueses neles filiados, o PSD e o CDS, “reforma” quer dizer “reforma estrutural”, expressão usada para, em sentido negativo, designar um conjunto de mudanças visando reduzir o estado social e afirmar o primado absoluto do mercado. Mais do que a promoção de uma economia de mercado, a direita pretende, com as chamadas reformas estruturais, construir uma sociedade de mercado, privatizando a prestação de serviços públicos e afirmando a utilidade económica como critério básico de avaliação de toda a atividade social.

2. Para um partido reformista como o PS, bem como para a família socialista europeia em geral, “reforma” é toda a mudança gradual no sentido de mais igualdade, liberdade e solidariedade. O exato oposto, portanto, do que a direita propõe. Por isso, o PS defende, nestas eleições, “um novo contrato social para a Europa”, um contrato que permita continuar a melhorar a educação, a grande aceleradora da igualdade de oportunidades, a qualificar o emprego e as condições de trabalho e a assegurar a eficácia e a equidade da proteção social de todos na saúde, no desemprego ou na reforma. Para isso é necessário substituir a conceção punitiva das regras orçamentais promovida pela direita por uma interpretação flexível que viabilize, simultaneamente, crescimento e inclusão. Uma equação possível de resolver, como o mostra a experiência governativa dos últimos anos.

3. Os que estão sempre prontos a utilizar os acordos europeus, nomeadamente em matéria orçamental, para invocar a necessidade da austeridade, leia-se, da redução das responsabilidades sociais do Estado, responderão que não há recursos para uma reforma social da Europa. A esses teremos que recordar que foi o PP que recusou fixar em 5% o valor de um novo imposto europeu sobre as grandes empresas transnacionais da economia digital. Hoje, essas empresas, com sede fora da União Europeia, praticamente nada pagam de imposto nos países em que geram as suas receitas e lucros. Esta situação é injusta e só pode ser resolvida a nível europeu, como Partido Socialista Europeu propõe. Só a escala da Europa constituirá risco suficiente para os gigantes da área digital se verem obrigados a negociar. Nestas eleições se verá quem quer verdadeiramente colocar o poder global da Europa, que esta tem, ao serviço de mais justiça fiscal e social.

4. A União Europeia não é só, o que já é bastante, um projeto globalmente bem-sucedido de paz e desenvolvimento, sem precedentes na história do continente. É também o único grande espaço político e económico da atualidade com uma história longa de institucionalização do Estado social. Abalado por sucessivas contra-reformas de origem neoliberal, o Estado social na Europa mantém uma implantação e adesão sem paralelo noutros grandes espaços políticos de âmbito continental. A viabilidade da sua sustentabilidade e desenvolvimento em cada estado-membro dependem muito de decisões políticas à escala europeia. Por isso, defender em Portugal a sustentabilidade e desenvolvimento do Estado social nacional passa por reforçar na Europa a influência do Partido Socialista Europeu. A hora é de escolha, entre a afirmação social da Europa, hoje como no passado recente, e a contra-reforma social da direita, que acabaria com o que faz verdadeiramente a diferença entre a União Europeia e os seus concorrentes globais.

[Publicado originalmente no Público, 12 de maio de 2019]

A afirmação social da Europa

A afirmação social da Europa

1. Nestas eleições europeias temos que escolher o significado que queremos dar à palavra “reforma”. Para o Partido Popular Europeu, bem como para os partidos portugueses neles filiados, o PSD e o CDS, “reforma” quer dizer “reforma estrutural”, expressão usada para, em...

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Três argumentos para dar força ao PS na Europa

Três argumentos para dar força ao PS na Europa

Que predisposição política deve o Partido Socialista assumir na Europa? Que contributo pode o socialismo democrático português dar à ideia de Europa? Que valores, que ideias, que rumo comum, que visão de futuro propomos nós para a União Europeia? Deixemos de lado, por...

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Três argumentos para dar força ao PS na Europa

Três argumentos para dar força ao PS na Europa

Que predisposição política deve o Partido Socialista assumir na Europa? Que contributo pode o socialismo democrático português dar à ideia de Europa? Que valores, que ideias, que rumo comum, que visão de futuro propomos nós para a União Europeia? Deixemos de lado, por instantes, a discussão sobre quantos euros em preços correntes ou constantes conseguiu o Governo negociar em fundos europeus para o país, e invertamos a questão, lembrando-nos da lição de responsabilidade cívica de John Kennedy: o que podemos nós fazer pela Europa? O que podemos nós acrescentar ao maior projeto político do século XX, para que ele se torne o maior projeto político do século XXI?

Comecemos por reconhecer que a ideia de Europa está em crise. Mais do que o projeto europeu no concreto das suas políticas e instituições, o que está em crise profunda é a própria ideia de Europa, do que somos e do que queremos ser enquanto europeus. Falta-nos uma visão de futuro comum, uma vontade política própria que oriente a ação da União e que seja mais do que o mínimo denominador comum entre os interesses de cada Estado-membro. Que razões explicam esta crise existencial? Talvez ela faça parte da própria natureza da União Europeia, da fragilidade inerente ao híbrido político que é e às suas inevitáveis contradições: tem e não tem soberania, é e não é democrática, quer e não quer ser uma união política. Ou talvez a crise existencial seja, hoje, mais óbvia porque nos perdemos na imensidão das discussões do dia. Brexit, Quadro Financeiro Plurianual, Semestre Europeu, Zona Euro. Mas, como diz George Steiner, a ordem do dia dificilmente estimula a alma humana.

Como gerir, então, a crise existencial e reavivar a alma europeia?

Seguindo um pequeno ensaio de Paul Ricoeur sobre a consciência histórica na Europa, proponho três razões pelas quais o socialismo democrático tem a predisposição política certa para responder ao desafio europeu do século XXI.

A primeira razão tem a ver com a existência de um espaço próprio de ação política, isto é, com a garantia de que a decisão política não se submete nem se reduz a imediatismos nem a determinismos. Talvez o melhor contributo deste Governo do PS para a sociedade portuguesa tenha sido o de libertar o país das narrativas unívocas, fechadas, deterministas – não só do ponto de vista da ação governativa, mas do próprio sistema político, a novidade da atual legislatura veio demonstrar que a democracia portuguesa está bem viva. Mas essa libertação só é possível mediante, por um lado, uma abertura crítica aos eventos passados e, por outro, o reconhecimento de que existe um alargado leque de possibilidades para o futuro que permite agir no presente e alterar o curso dos acontecimentos. É esta libertação do espaço de decisão política que o PS deve trazer para a Europa, sobretudo quando ganham tração tendências populistas que conduzem a uma redução trágica da liberdade política. Com uma visão petrificada do mundo, os nacionalismos eurocéticos ou antieuropeus prometem retomar a grandeza e a pureza do passado nacional, restituindo a voz ao povo desprezado pela arrogância das elites cosmopolitas que governam a partir de Bruxelas. Os populismos entrincheiram os cidadãos em narrativas fechadas e catastrofistas, a sua força motriz reside na exploração do medo e das inseguranças. Mas, ao contrário do que anunciam, a liberdade política está condenada quando o que a move é o medo e a angústia. Ao contrário do que proclamam, as adversidades enfrentam-se em conjunto, com esperança e coragem, fora da trincheira. Foi exatamente isto que António Costa defendeu no Parlamento Europeu no ano passado.

O segundo argumento está relacionado com a especificidade da história europeia. Ricoeur sugere que a história do continente europeu foi sendo construída através de dialéticas entre tradições e convicções muito fortes e a crítica a essas tradições, num permanente estado de crise. Essas crises acontecem devido às migrações, seja em sentido social, pela presença e convivência entre povos diferentes, seja no campo das ideias, com a influência de outras formas de pensar e olhar o mundo. Ora, a superação das crises foi sendo feita com a integração da diversidade que as permanentes migrações trouxeram ao seio da Europa. Isto significa que a civilização europeia não é estanque, nem homogénea, nem pura, nem essencialista, é, isso sim, uma combinação de múltiplas influências, da raiz greco-romana ao iluminismo, dos árabes aos mongóis, e que essa confluência, feita à luz de uma consciência crítica, enriquece a cultura e a identidade dos povos europeus, não o inverso como alguns defendem. Mais uma vez, esta tem sido a linha defendida por António Costa sobre a vocação de abertura de Portugal e da Europa (apesar de alguns líderes europeus se virem afastando dessa vocação europeia). A nossa postura é de abertura ao mundo e ao outro, é de construção de pontes e acomodação das diversidades. Por isso o nosso regime de imigração é um dos mais abertos do mundo. Por isso somos uma das principais vozes contra as tendências protecionistas na União, não só face ao exterior como no interior do próprio mercado único. Não é acidental termos Guterres na ONU e Vitorino na OIM. Uma Europa que se vem fechando sobre si mesma precisa, mais do que nunca, da voz determinada daqueles que acolhem e integram a diversidade e que fazem da convivência com o mundo a sua vocação.

A terceira razão que confere ao PS a predisposição certa para defender a ideia de Europa é um elemento fundamental em política: a dimensão da utopia. Se os argumentos anteriores pressupunham a abertura do espaço de decisão e a abertura ao outro, a utopia pressupõe a abertura ao futuro. Sermos capazes de lidar com a imprevisibilidade de um mundo que é, contrariamente do que supunha a tese do fim da história, cada vez mais diferente de nós, talvez até mais hostil, mais incerto, que nos escapa cada vez mais. Só assumindo a coragem política da abertura, apesar das fragilidades e das fraturas que essa abertura pode implicar, podemos verdadeiramente projetar um futuro melhor.

É preciso que haja utopia, sonho, desígnios que superem a circunstância. Sem esse elemento perde-se o rumo e paralisamos. O que nos leva a questionar se a postura conservadora pode alguma vez ser uma boa resposta política, já que rejeita a utopia como tal. A mudança no conservadorismo dá-se por necessidade pragmática. Mas sem um sentido discernível, identificável, não há ação política possível, não há política propriamente dita. Há metas, há objetivos, mas não há finalidades, causas pelas quais lutar. Na política conservadora, as decisões orientam-se por força da necessidade ou da utilidade. A Comunidade Económica Europeia nasceu da necessidade e da utilidade, mas superou largamente essas causas. Só o facto de ter deixado cair o elemento “Económica” e passado a designar-se União já o indicia. Somos sim, desde o início, um projeto político e civilizacional, temos sim um sentido no nosso agir político. A necessidade e a utilidade, por si só, não estimulam a alma humana, limitam a inteligibilidade dos acontecimentos e constrangem a liberdade política.

A social-democracia tem a predisposição exatamente oposta à da direita conservadora. Para a social-democracia a mudança é o motor e a orientação da ação política, o que não significa querermos, como a esquerda radical, revolucionar toda a sociedade, desconstruindo as suas estruturas básicas, porque aí estaria a liberdade em jogo (é necessária uma apreciação crítica daquilo que pode ser revolucionado e do que não pode, ou cujos riscos para a liberdade e o bem comum são significativos). Sobretudo no século XXI, em que a mudança rápida é a regra, não podemos não acompanhar essa mudança aguardando os resultados de uma suposta “ordem espontânea” da sociedade que, só por serem espontâneos, já seriam bons. Temos de assumir o dever de orientar e adaptar a sociedade à mudança, sem a estrangular nem a deixar à deriva – como recomenda a doutrina libertária –, estando conscientes de que a mudança é inevitável e que, por isso, dela devemos saber colher os melhores frutos. Que ninguém fique à deriva, que ninguém fique para trás. Os desafios que a revolução tecnológica e a globalização nos colocam são o melhor exemplo: há que transformá-las em algo bom para todos, saber distribuir equitativamente os seus benefícios e limitar as suas externalidades negativas.

Em Portugal só o PS está pronto para este desafio na Europa, porque só o PS tem a disposição política adequada para o fazer.

Como citar: Filipa Brigola Filipa Brigola (2019), “Três argumentos para dar força ao PS na Europa”, Socialismo Democrático. https://socialismodemocratico.ps.pt/index.php/2019/04/28/tres-argumentos-para-dar-forca-ao-ps-na-europa/

A afirmação social da Europa

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Três argumentos para dar força ao PS na Europa

Três argumentos para dar força ao PS na Europa

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Como (não) falar de impostos

Como (não) falar de impostos

“Carga fiscal”, “punção fiscal”, “peso dos impostos”. Nos últimos anos, estas expressões tomaram conta do discurso politico sobre a fiscalidade em Portugal, não sendo apenas usadas pelos partidos da direita, mas também por um governo que se tornou uma referência na social-democracia europeia. A redução da carga fiscal tornou-se mesmo um dos critérios do (in)sucesso da governação, de tal forma que, no fim de Março, perante a confirmação do mais baixo défice orçamental do nosso período democrático (em 2018), a imprensa deu mais visibilidade a outro resultado “histórico”: a mais alta carga fiscal de sempre.

Como já muitos explicaram, a carga fiscal – ou, numa formulação mais neutra, o “nível de fiscalidade” – subiu em 2018 por bons motivos: como não houve subida das taxas de imposto, foi o crescimento da atividade económica e do emprego que gerou maior receita fiscal. É preciso dizê-lo: a sua subida é uma boa notícia.

Este texto, porém, não é sobre a relação entre a fiscalidade e o PIB – mas sobre a forma como a social-democracia em Portugal se habitou a falar dos impostos. Não é preciso um estudo profundo sobre o impacto do discurso político na opinião pública para compreender que efeito tem o sistemático uso, pelos políticos, e a exposição, pelo público, a uma linguagem técnica que incorpora julgamentos normativos negativos sobre a tributação. A situação é ainda mais preocupante quando os social-democratas partilham a linguagem e o critério de sucesso da direita liberal: a redução da carga fiscal.

Esta atitude, para além de deixar os eleitores órfãos de uma contranarrativa que lhes dê instrumentos para pensar sobre os impostos de outra forma, coloca os sociais-democratas sistematicamente à defesa e limita a sua margem de manobra programática na política fiscal. Se os impostos são uma “carga” ou um “peso”, é difícil imaginar outro objetivo que não seja baixá-los tão rapidamente quanto seja sustentável do ponto de vista orçamental. Neste quadro, como será possível pensar no futuro em subir um imposto (por exemplo, através do englobamento, mesmo que parcial, do IRS) ou (re)introduzir um outro (como o imposto sucessório)?

É verdade que, por vezes, os impostos são publicamente justificados como fonte de financiamento de políticas públicas que os cidadãos valorizam (saúde, educação, proteção social, segurança pública, justiça) e das necessidades financeiras do Estado, ou como instrumento de luta contra as desigualdades. Estas justificações, porém, para além de poderem sugerir mais perguntas do que respostas (é mesmo preciso pagar tanto por esses serviços, muitas vezes de qualidade abaixo do esperado? quais as desigualdades que devem ser combatidas: todas ou só as que são consideradas injustas?) são quase sempre demasiado tímidas. Para lutar contra um senso comum que encara, na melhor das hipóteses, a tributação como um “mal necessário”, é preciso um argumentário mais robusto.

Ora, defender a importância da tributação implica assumir que somos parte de uma comunidade; que viver em comunidade implica a existência de direitos e de obrigações (porque é o cumprimento das segundas que assegura a possibilidade de garantir os primeiros); que numa comunidade nacional dotada de um Estado responsável pelas funções de coordenação essenciais, os impostos são o meio mais eficaz para cumprir as nossas obrigações como cidadãos; que a tributação obedece (ou deve obedecer) a princípios de justiça amplamente partilhados (sendo “justiça fiscal” um valor mais importante e mobilizador do que o da “estabilidade fiscal”); e que as políticas que os impostos financiam não apenas redistribuem, mas aumentam a liberdade agregada, numa definição de “liberdade” que é ela própria diferente da usada pela direita liberal.

Talvez esta invocação de um comunitarismo cívico fira alguma sensibilidade quase libertária de muitos sociais-democratas. Mas falar de direitos sem falar das obrigações que os financiam é filosoficamente pobre e politicamente ineficaz, deixando o discurso dos “deveres” dos cidadãos para ser apropriado pela direita.

Curiosamente, há quase um quarto de século, o New Labour procurou reintroduzir no discurso social-democrata uma dimensão (neo)comunitarista: “No rights without responsabilities”, repetia Tony Blair. Infelizmente, esta inovação discursiva visava reforçar a centralidade da “responsabilidade individual” e passar a mensagem de que o “novo” Estado social não toleraria que os mais pobres continuassem a receber prestações sociais sem contrapartidas efetivas na procura ativa de emprego. Não é, porém, necessário subscrever o significado punitivo desta retórica para reconhecer que a ideia de que “não há direitos sem responsabilidades”, e o princípio de reciprocidade que lhe subjaz, é fundamental para defender a ideia de comunidade e, por extensão, para justificar a existência de impostos.

Alguns dirão que este é um combate discursivo impossível de ganhar, porque “ninguém gosta de pagar impostos” e “não é possível convencer as pessoas do contrário”. Acontece que a falta de comparência é a pior de todas as opções. Combater a hegemonia liberal no discurso público sobre os impostos exige, por parte dos social-democratas, decidir abandonar a linguagem corrente, substituí-la por uma argumentação nova, e ter a coragem de a usar de forma sistemática e pedagógica, procurando liderar uma narrativa que dê ao público a oportunidade de pensar sobre impostos de forma diferente da que é permitida pelo discurso da direita liberal.

Como citar: Mendes, Hugo (2019), “Como (não) falar de impostos”,Socialismo Democrático. https://socialismodemocratico.ps.pt/index.php/2019/04/22/como-nao-falar-de-impostos/

A afirmação social da Europa

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Três argumentos para dar força ao PS na Europa

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Política, pessimismo e populismo

Política, pessimismo e populismo

1. O avanço do populismo de direita é, provavelmente, o problema mais crítico que a Europa enfrenta hoje. Muitos analistas, incluindo eu, relacionaram a ascensão do populismo com o declínio da social-democracia, ou centro-esquerda. Muitos dos eleitores social-democratas tradicionais votam agora populista; o abraço da social-democracia a um neoliberalismo mais “amigo e gentil” abriu o “espaço” político que os populistas ocuparam com um chauvinismo social; e o enfraquecimento eleitoral da social-democracia inviabilizou a formação de governos de maioria de esquerda e, em muitos países europeus, qualquer maioria estável de governo, tornando mais difícil a resolução de problemas, aumentando a insatisfação com a democracia e o apoio ao populismo.

Porém, para além destas conexões há algo ainda mais fundamental: a perda da perceção da possibilidade de mudança que a social-democracia injetara na democracia liberal do pós-guerra.

A social-democracia foi a ideologia mais otimista e idealista da era moderna. Em contraste com os liberais, que acreditavam que a “lei das massas” conduziria ao fim da propriedade privada, à tirania da maioria e a outros horrores, e por isso defenderam a limitação da política democrática, bem como com os comunistas, que argumentavam que um mundo melhor apenas poderia surgir da destruição do capitalismo e da democracia “burguesa”, os social-democratas insistiram no imenso poder transformador e progressivo da democracia: esta permitiria maximizar as vantagens do capitalismo, minimizar as suas desvantagens e gerar sociedades mais prósperas e justas.

Apelos neste sentido emergiram claramente nos anos entre guerras, quando a democracia foi ameaçada pelo antecessor mais perigoso do populismo – o fascismo.

Nos Estados Unidos, por exemplo, Franklin D. Roosevelt reconheceu que necessitava de lidar não apenas com a falência económica da Grande Depressão, mas também com o medo de que a democracia se estivesse a desvanecer na  “poeira da história”, enquanto as ditaduras fascistas e comunistas emergiam como a onda do futuro. Lidar com ambos os problemas requereu não só soluções práticas para os problemas contemporâneos mas também capacidade para convencer os cidadãos de que a democracia continuava a ser o melhor sistema para criar um futuro melhor. Tal como Roosevelt proclamou no seu primeiro discurso de posse:

“Comparado com os perigos que os nossos antecessores ultrapassaram porque acreditaram e não tiveram medo, ainda temos muito para estar agradecidos… [Os nossos problemas não são insolúveis, existem] porque os governantes falharam… devido à sua teimosia e… incompetência… Esta Nação pede ação, e ação já… Eu assumo, sem hesitar, a liderança deste grande exército do nosso povo empenhado em, disciplinadamente, atacar os nossos problemas comuns. A única coisa de que devemos ter medo é do próprio medo.”

2. Uma dinâmica semelhante desenrolou-se numa outra história de sucesso do centro-esquerda nessa era – a Suécia. Reconhecendo o perigo da praga de governos instáveis minoritários que assolou o país no período entre guerras, o poder crescente do fascismo e os desafios da Grande Depressão, o partido social democrata (SAP) desenvolveu uma nova perspetiva da relação entre Estado e capitalismo, culminado na famosa defesa de um “Keynesianismo antes de Keynes”. Tal como Roosevelt, ofereceram aos eleitores soluções concretas para problemas contemporâneos, bem como o compromisso de construir um mundo melhor. Durante a campanha eleitoral de 1932, um jornal do partido declarava, por exemplo, que “a humanidade carrega o seu destino nas suas próprias mãos… Onde a burguesia apregoa lassidão e submissão ao… destino, nós apelamos ao desejo do povo por criatividade… conscientes de que podemos e seremos bem-sucedidos na construção de um sistema social onde os frutos do trabalho beneficiarão os que estiverem disponíveis para […] participar nesta tarefa comum” (ver aqui). O partido combinou este apelo económico com a promessa de transformar a Suécia num “Folkhemmet” ou “lar do povo” – um país onde “as barreiras que… separam cidadãos” seriam eliminadas e onde não existiriam “nem privilegiados nem negligenciados, governantes ou dependentes, saqueadores e saqueados” (ver aqui). O resultado foi que, ao contrário do que aconteceu em países como a Alemanha e a Itália, onde os fascistas apareciam politicamente ativos e ambiciosos, na Suécia foi o SAP a ficar conhecido como o partido com planos entusiasmantes para criar um mundo melhor.

Depois de1945, os partidos social-democratas, em geral, aceitaram as políticas defendidas por Roosevelt e pelo SAP. Ironicamente, o sucesso dessas políticas na estabilização da democracia capitalista conduziu a que muitos começassem a ver o trabalho da esquerda mais em termos tecnocráticos do que em termos transformadores. Esta tendência culminou, no final do século XX, com líderes como Blair, Clinton e Schroeder, no entendimento de que projetos transformadores eram coisa do passado, ou mesmo perigosos, e que o objetivo da esquerda deveria ser gerir a democracia capitalista melhor do que a direita. Os perigos deste entendimento, ou pelo menos as suas desvantagens, foram reconhecidas pelo próprio Blair que afirmaria, num discurso em 2002, que “por vezes, pode parecer que [a política se transformou] num exercício meramente tecnocrático… mais ou menos bem gerido, mas sem qualquer propósito moral primordial”.

Quando os tempos são bons, este tipo de política pode ser suficiente, mas quando não são, a crença generalizada de que os governos não querem ou não conseguem alterar o status quo conduz ao descontentamento com a democracia. É aqui, claro, que entra o populismo.

O populismo vende uma política do medo – do crime, do terrorismo, do desemprego, do declínio económico, da perda de valores nacionais e da tradição – e afirma que os outros partidos conduzem os países para o desastre. Os estudos de opinião mostram que os eleitores populistas estão extremamente pessimistas, acreditando que o passado era melhor que o presente, e extremamente ansiosos quanto ao futuro. Mas o pessimismo infetou as sociedades ocidentais mais amplamente. Um inquérito recente do Pew Research Center, por exemplo, revelou que, apesar da proporção crescente de cidadãos europeus que, nos seus países, vivem uma situação económica muito melhor do que uma década antes, tal não se traduz em mais otimismo acerca do futuro. Com efeito, em muitos países europeus o diferencial “experiência-expectativa” cresceu: na Holanda, na Suécia e na Alemanha, por exemplo, aproximadamente 80 por cento ou mais afirmam que a economia está a ir bem, mas menos de 40 por cento acreditam que a próxima geração viverá melhor do que a dos seus pais. Estas perspetivas refletem uma realidade problemática: particularmente em tempos de mudança e incerteza, a visão das pessoas é mais moldada pelas emoções do que pela racionalidade. Reconhecendo isso mesmo, Roosevelt, o SAP e os social-democratas compreendiam que, para o centro esquerda e a democracia serem bem-sucedidos, precisávamos não apenas de soluções práticas para problemas contemporâneos, mas também de uma visão otimista para contrapor à visão distópica oferecida pelos populistas.

Durante as décadas do pós-guerra, a social-democracia providenciou isto mesmo. Contra o comunismo e o liberalismo argumentou que as pessoas, trabalhando em conjunto, podiam usar o Estado democrático para transformar o mundo num lugar melhor. Os problemas do século XXI são diferentes na forma, mas não no género. Continuamos a precisar de combinar políticas pragmáticas que possam responder a desafios como a desigualdade económica, o crescimento lento e mudanças culturais e sociais desconcertantes, com a capacidade para convencer os cidadãos de que a democracia liberal oferece o caminho mais promissor para um futuro melhor. O avanço de políticos tão diferentes como Trump, Corbyn ou Macron torna claro quão desesperados estão os cidadãos por líderes que insistem que a política interessa – que a mudança é possível se a vontade existir. Se os partidos de centro-esquerda não conseguirem responder a este anseio, os eleitores virar-se-ão para outros partidos que o façam – com consequências potencialmente nefastas para o destino da democracia liberal.

[Publicado originalmente em Social Europe, 10 de outubro de 2018. Os cartoons que ilustram o texto podem ser vistos aqui.]

Como citar: Berman, Sheri (2019,” Política, pessimismo e populismo”, Socialismo Democrático. https://socialismodemocratico.ps.pt/index.php/2019/03/25/politica-pessimismo-e-populismo/

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